sábado, 25 de março de 2017

Samba no pé, Ceará no peito: Lira Neto "esnoba" acesso e exalta Maradona

Lira Neto, Ceará (Foto: Thaís Jorge)
Lira Neto lançou faz a biografia do samba no País e publicará até 2019 (Foto: Thaís Jorge)
Lira Neto, criança ainda, ganhou da mãe um time de futebol de botão. Antes, brincava com tampas de refrigerante. A mãe, primeiro, deu o elenco do Ceará. Depois, o do Fortaleza. Mas aí amor pelo time de Porangabuçu já estava aceso. O jornalista cearense, que lança neste sábado (25), no Passeio Público, o livro "A história do samba (As Origens)", escolheu o Vovô pelas cores minimalistas: o preto e o branco. Sempre foi tímido, lembra. A paixão pelo Ceará ele transferiu para a filha Emília. E a mantém mesmo na rotina intensa de quem, hoje, faz um passeio pelo gênero musical, o samba, em três volumes. O último será lançado em 2019. 
Na entrevista, Lira Neto desabafa: até biografaria um jogador de futebol, mas ele seria um argentino polêmico e engajado. Comenta sobre os sambistas do Rio de Janeiro e a relação descontraída com os times deles: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Também se diz decepcionado com a forma de conservação do Maracanã e da própria cidade de Fortaleza. Por último, afirma que - ironicamente - não sonha com acesso do Ceará à primeira divisão do Brasileiro. Aliás, tudo depende de onde estiver o maior rival... Confira a entrevista completa com o biógrafo de Castelo Branco, Padre Cícero, Maysa, dentre outros.

O primeiro contato com o futebol e o amor pelo Ceará
Eu nasci em Fortaleza, mas boa parte da minha infância foi em Caucaia. Eu me lembro que a minha mãe me deu o time de futebol de botão no meu aniversário e era o time do Ceará. Antes disso, eu brincava com tampinhas de refrigerante. Ela me viu naquilo e disse: "Vou comprar um  time de futebol de verdade para o meu filho". E eu jogava na calçada. Não tinha o campo. Depois, ela comprou o do Fortaleza. Eu fazia as partidas, jogava comigo mesmo, porque eu era muito tímido, muito calado. O Ceará sempre ganhava, porque eu achava um time mais bonito. O preto e branco me chamavam atenção. Sempre gostei de coisas minimalistas. A elegância é sinônimo do menos. O Fortaleza, para mim, me parecia com cores fortes. Achava o Ceará mais sóbrio e mais bacana. Começou no jogo de botão. Depois, eu ganhei o "Estrelão", campo de futebol maior. Quando fui para Fortaleza, para fazer o segundo grau, fui estudar na escola técnica (hoje, IFCE). O Presidente Vargas era atrás. Eu sempre dava uma escapada da aula para ir no PV no dia de jogo do Ceará. A coisa foi dessa forma. Quando eu me mudei para São Paulo, saí de Fortaleza em 2001. Quando me perguntam lá que time eu torço, eu digo Ceará. Eles olham e dizem: "Mas aqui?". Eu digo: "Ceará". Em todos os lugares, eu torço Ceará mesmo. 
A rotina de biógrafo e a rotina de torcedor

O fato de a minha mãe ter me dado o futebol de botão, o primeiro, do Ceará, já demonstra uma certa predileção. Teve até um episódio engraçado. Eu tenho duas filhas mais novas, do meu terceiro casamento. Elas já nasceram em São Paulo. Uma tem 12, e a outra tem sete. Essa de 12 era pequena. No dia dos Pais, era temático, a gente iria com as blusas dos times de coração. Chegamos eu e Emília vestidos com a do Ceará. Cheio de corintiano, são paulino, palmeirense. É muito engraçado isso. É uma forma de manter um vínculo afetivo com o Ceará. Eu acho que é uma coisa muito decorrente da outra. Apesar de ter bancado o "pau-de-arara", ter mudado para São Paulo, eu carrego muito do estado do Ceará. Tenho quatro biografados cearenses - José de Alencar, Rodolfo Teófilo, Castelo Branco e Padre Cícero - e levo o time comigo. Nunca mais fui ao estádio para ver o Ceará jogar. Mas eu acompanho pela televisão. É uma forma de manter essa relação com estado em que eu nasci. 
O momento mais marcante, para ele, do Ceará e os maiores ídolos

O tetracampeonato do Ceará. Aquele gol do Tiquinho. Eu ouvi pelo rádio. Mas lembro que um amigo me deu a gravação em fita de uma narração do Gomes Farias do gol do Tiquinho. E sempre que a gente se reunia para tomar uma cerveja botava em todo volume. Os amigos do Fortaleza presentes, a gente ficava fazendo onda. Lembro também de um momento muito triste, quando levei o meu filho mais velho, que hoje tem 30, para ver Ceará e Palmeiras, que o Palmeiras ganhou de 5 a 2. Foi no PV, eu gosto muito do estádio. Ele torcia pelo Palmeiras e a gente estava no meio da torcida do Vovô. Ele comemorando. O técnico era o meu xará, o Lira, fomos tomar uma cerveja no Boteco Paladar, na avenida 13 de maio. Lembro que a gente estava tomando cerveja, o Lira chega sozinho. Imagina o que era a cabeça dele naquele momento. Fez dois gols e levou cinco. Gostava muito dos anos 70, quando o Ceará tinha o Hélio no gol. E tinha a coisa do Tiquinho, que sempre foi muito querido, e depois que deixou de jogar futebol ficava no estádio sempre. Gostava de dizer que era o Tiquinho, autor do gol histórico. Tratado com muita reverência, ao mesmo tempo como o doido das ruas. Teve esse lado afetivo com o Tiquinho, porque eu achava ele um grande cara. Mais recentemente, teve o Sérgio Alves. Teve a época do Marciano, nos anos 70, que ficava mudando entre Fortaleza e Ceará, e foi quando eu descobri o futebol. A Copa do Mundo que eu tenho maior memória é a de 74. Eu nasci em 63. Então, foi a minha primeira memória de Copa. As memórias me levam sempre para 70, quando o Ceará também tinha um timaço mesmo. 
Todo brasileiro tem "futebol e samba" na essência

Eu acho que faz parte da nossa cultura. Não vejo isso como um simples estereótipo. Não vejo isso como coisas menores, nem pejorativas, nem que signifique tendências a gostar de coisa fútil. O futebol e o samba são elementos fundadores da nossa cultura, eles estão muito próximos. Eu fujo do termo identidade. É falar do "uno", eu prefiro o múltiplo. Acho que são elementos indissociáveis e apontam para uma coisa fantástica. Temos vocação para festa. A festa, quando você abole todas as normatizações, as padronizações. Por isso que é muito mais legal, às vezes, ver um jogo de várzea do que um de Copa. Às vezes, mais legal ir a uma roda de samba de um botequim pé sujo do que ir para o show de um sambista de sucesso. Faz parte dessa nossa vocação para festa. Não está dissociado da agonia, e eu mostro isso no meu livro. Porque trabalham com paixão e se intercambiam. Caetano fez com Gil: "O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor". O futebol também faz isso. Quais são os meus grandes ídolos? Garrincha, anti-herói, Romário, um dos últimos românticos. Eu não quero alguém  para casar com minha filha, eu quero para fazer gols. Eu gosto desse traço dos anti-heróis, que não são certinhos. Não como Pelé. Hoje, se um cara vai fazer o que o Garrincha faz, a imprensa cairia em cima dele. "Tem que ser objetivo, tem que driblar em função do gol". Deixa disso. Um drible é sempre um drible. O futebol sem drible não existe, vira aquela coisa mecânica, europeia. E eu prefiro me emocionar. Tudo isso faz parte das deliciosas contradições do Brasil. 
Uma personalidade do futebol para biografar: Maradona

Garrinha, quando o Ruy Castro pegou para fazer a biografia, eu disse "poxa"... Mas caiu em belas mãos. Eu fico pensando... Pelé, jamais. O jogador é talentoso, mas não. Talvez o Maradona. Um malandro brasileiro típico. Tem a questão do comprometimento político. Achei isso genial. O gol de mão, a mão de Deus. O futebol se engravatou muito. Sem falar da peste eterna que são os cartolas, que estão ali para se darem bem financeiramente. Como tudo no Brasil, tem esse lado tenebroso, obscuro, de corrupção. Não estou fazendo aqui o discurso moralista de classe média, tenho pavor desse discurso. Quando você junta uma indignação com a questão da corrupção com o patriotismo mais ingênuo, a história já mostrou que não dá certo. Como não está dando. 
Os mais belos sambas que falam de futebol

Tem um belíssimo samba de João Bosco e do Aldir Blanc: "Incompatibilidade de gênios". "Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar"... Essa música, eu acho fantástica. E Jorge Ben fez umas músicas fantásticas, uma das mais lindas. Era Fio Maravilha e depois se transformou em Filho Maravilha por conta de atritos com o Fio. Então, a música brasileira está cheio dessas citações.
A semelhança temporal entre a profissionalização no futebol e a maior divulgação do samba no rádio

Tem uma coisa bastante interessante na sua questão. Essa coincidência pode não ser uma simples coincidência. Tem várias camadas que a gente poderia estabelecer. De um lado, esporte hegemônico. De outro, o ritmo musical hegemônico. Eles se dão em um momento sensível na vida brasileira. Em que determinados estratos da população brasileira, até então, invisibilizados, muitas vezes encontravam no futebol e no samba a forma de inserção social. Isso não se deu de forma pacífica, mas conflituosa, o preconceito no momento era centrado exatamente numa perspectiva de que parecia que eles invadiam espaços sagrados, das elites. O povo se apropria. Isso se dá no samba quando surge a indústria do entretenimento, que tem algo com o surgimento também do rádio. O rádio vai olhar exatamente para aquelas matérias-primas que começam a ter popularidade: os programas musicais e as transmissões esportivas. Futebol e samba nascem no mesmo momento, na mesma topografia. De onde saíram os grandes craques também saem os grandes sambistas, das classes marginalizadas. Na hora de dividir o bolo, quem comandava os cordões da indústria ficava com a melhor parte disso. No samba e no futebol, a mesma coisa. 
Os sambistas cariocas, o Maracanã e a pouca memória em Fortaleza

O futebol carioca é uma coisa de outra dimensão. A relação do carioca com o futebol é diferente da do paulista. Eu moro próximo do estádio do Palmeiras, acho uma coisa mais bélica em São Paulo. A relação dos times cariocas é mais descontraída. Você sabe o time que o Chico Buarque torce, mas não sabe, por exemplo, o do Arnaldo Antunes. A relação do carioca é uma coisa muito bonita. Sem falar da grande mística do Flamengo. Se eu tivesse que escolher, provavelmente, seria Botafogo, o Alvinegro, com a minha vocação para perder. É muito mais leve. No meu lançamento no Rio, tinha gente com camisas das escolas de samba e dos times de futebol mesmo. Eu acho isso muito interessante. Que pena a gente ler sobre o estado em que o Maracanã se encontra. Como deixaram isso acontecer? Deixar o estádio, logo após a reforma, abandonado é um atentado à memória nacional. Só um País sem memória como o nosso faz isso. Eu vi uma foto do Maracanã, é de chorar. Quem assistiu a um jogo no Maracanã pela primeira vez fica com a sensação. É um templo. Mas isso é geral no País. Fortaleza é uma prova muito eloquente disso, uma cidade que se destrói e que se constrói a todo momento. Uma mutação autofágica. Sempre que eu volto à cidade, eu não a reconheço. Se destrói com muita facilidade. Todo mundo fala em tirar o carro da paisagem e aqui não se faz isso. Constrói-se viaduto para todo lado. Tiram as árvores. Não tem calçadas, é hostil ao pedestre. O abandono do Maracanã é um sintoma de um mal que é maior e que Fortaleza vive esse mal de uma forma quase atávica. Uma coisa de destruir o que é bonito. 
O samba em Fortaleza e a pouca presença do negro

Falaram que tem uma bela roda de samba no Presidente Kennedy (bairro periférico). Falei até com o Nei Lopes (cantor, compositor e estudioso da cultura de toda a África). Mas acho que essa dificuldade de detectar o samba aqui é pela ausência do negro no processo civilizatório. Talvez por isso Fortaleza seja uma cidade tão racista, uma das mais racistas que eu conheço. É porque o negro é um estranho. O nosso povo é o caboclo. A nossa elite é uma elite rural. Onde o negro não é utilizado no gado, no algodão. O Ceará diz que é a Terra da Luz, que aboliu antes os escravos. Mas não utilizávamos. O cearense era mais índio. O que não significa que não podemos produzir coisas interessantes, que são prima-irmãs do samba. O coco de praia vem da mesma raiz, o tambor de crioula do Maranhão, eles vão tomando caminhos da influência das etnias delas. Mas todas vêm lá do batuque africano. Batuque, uma palavra branca, estou utilizando. Forjada pelo colonizador, porque para ele tudo o que tinha tambor era sinônimo de batuque, de samba e de macumba assim. Todas essas manifestações de samba rural que pena que é pouco valorizado no Ceará. Em Pernambuco, a meninada utiliza isso. Eles pegam as coisas da cultura popular e rearranjam. Cordel do Fogo Encantado, Manguebeat, eles fazem isso de forma muito antropofágica. Temos o Pessoal do Ceará, o Cidadão Instigado faz isso. Tenho amigos e músicos no Ceará, mas não recordo que eles tenham falado de Ceará, Fortaleza ou Ferrim. É como se eles vivessem em outro universo agora. 
Samba como embalo dos Mundiais 

O Zeca Pagodinho é um monstro. Eu me lembro quando ele saiu na capa da Bravo!, lembro de amigos que falavam que a Bravo! não era mais a mesma. Eu pensava: que maravilha! Só o Zeca vindo do Cacique de Ramos, era maravilhoso. Enfrentando preconceito dentro do próprio samba. Na Copa, sempre tem uma música que fica como a música da Copa, um samba ou um axé, com uma negritude presente neles. Uma das coisas mais lindas é ver um time africano jogar. Não que não tenha craque branco, Tostão, Zico... Zico, às vezes, tendo a acreditar que está no mesmo nível de um Pelé. Sócrates... Lembro dele em 82. Não ganhamos a Copa, fomos os campeões morais. 
Os próximos livros e o sambódromo como fim da trilogia, uma revelação 

- O segundo volume, que sai no ano que vem, é um momento-chave. É um momento que o samba se institucionaliza, para o bem e para o mal, se profissionaliza. A partir do começo dos anos 30 até meados dos anos 40. Estou entusiasmado. É a chamada época de ouro e é quando o samba se torna o ritmo mais gravado no País. O rádio passa a ser o meio que mais divulga o samba no Brasil. É o momento em que há um embranquecimento do samba e há uma "desafricanização" do samba. Os protagonistas passam a ter uma outra pigmentação. Mesmo que boa parte da produção seja feita por gente do morro, ainda padecendo de condições econômicas precárias. O terceiro volume, que começa do final da Década de Ouro entrando na Década de 50. Algumas derivações do samba passam a ofuscá-lo, como a Bossa. Vai até os anos 70, onde há uma retomada por alguns, tem o Cacique de Ramos. Eu quero fazer como o ponto final dos três livros a inauguração do sambódromo. Acho que a partir daí vira um outro negócio. Sai do foco do fenômeno cultural e entra no espetáculo da indústria do turismo também. Na Praça da Apoteose, que não deu certo. Talvez o meu fim seria exatamente o momento em que a Mangueira chega ao final e volta a avenida. Isso é lindo. É a parte final do livro. Essa cena é maravilhosa, porque é subverter o sambódromo do para quê ele foi criado. É um negócio fantástico. Mas já entram empreiteiras da construção dele, os compositores em grupos de 500 pessoas para fazer um samba. Não que o carnaval tenha morrido, como diz Nelson Sargento. Eu o conheci agora antes. A frase dele é fantástica e é "Agoniza, mas não morre". A ideia é exatamente essa: o samba como toda produção da cultura popular, é algo que está constante ebulição. 
Ceará não precisa subir, crava Lira

Eu brincava com um amigo meu que a gente tinha que fazer um projeto Tóquio. Agora, nos Emirados. Eu tenho uma preferência pelo cavalo que tira o último lugar na corrida. Tinha uma simpatia pelo Calouros do Ar, assim como tenho pelo Ferrim. É como ser Botafogo, Portuguesa. Uma pessoa assim não pode ser ruim. É acostumado a lidar com a frustração e transformar isso em algo prazeroso. Os amigos diziam: esse ano, acho que o Ceará sobe. Eu penso: não, deixa ele na Segunda. Eu acho que o lugar do Ceará é na Segunda. Não quero ele disputando com Flamengo, Palmeiras, desde que o Fortaleza fique na Terceira. Se o Fortaleza vier para a Segunda, a gente tem obrigação moral de conseguir o acesso à Primeira Divisão do Nacional. 

Por Fortaleza, CE

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